TEXTO CLASSIFICADO EM 2º LUGAR NO PRÉMIO RIACHO 2004/05

Perda Irreparável

Acordei sobressaltada por causa de um pesadelo atroz! O cenário era ebúrneo, tão ebúrneo que me assustava. Entrei numa sala que parecia uma igreja, pois as janelas irradiavam uma luz ofuscante que me impedia de ver nitidamente. Subitamente, as janelas despedaçaram-se e apercebi-me de que uma criança estava ajoelhada em frente ao altar. Virou-se repentinamente. Assustei-me e tentei fugir, mas a porta fechou-se e as janelas eram demasiado altas. O bebé estava num estado lastimável. Ficava cada vez mais pequeno até desaparecer por completo. O que me fazia recuar era o sorriso néscio estampado na sua cara e os olhares doentios que me lançava. Parecia querer dizer-me algo.

Já estava com duas semanas de atraso e a minha angústia crescia de dia para dia. Não podia estar grávida, não podia! De repente sentia a realidade demasiado perto de mim, como se me envolvesse tal redoma intransponível. Precisava tanto de sonhar! Precisava tanto de me abstrair por momentos e esperar simplesmente que tudo não passasse de um devaneio.

Sabia que não podia adiar mais a situação, por isso comprei um teste de gravidez na farmácia e, para não correr riscos, fi-lo na casa de banho de um café perto da escola. As minhas mãos tremiam incessantemente e a força das minhas pernas depressa se desvaneceu. Aquela linha cor-de-rosa do teste aumentava vertiginosamente diante dos meus olhos até se tomar estonteante. Escorreguei lentamente pela parede húmida e chorei convulsivamente assim que me encolhi no chão. Toda aquela conversa lassa sobre a sexualidade parecia agora fazer sentido. Levantei-me demoradamente, olhei-me no espelho. Foi como se visse para além do meu reflexo, como se conseguisse ver a minha alma ali, amarrotada. Fiquei demorados minutos quedada na minha imagem, descobrindo a cada segundo que passava um traço novo no meu rosto.

Saí da casa de banho e sentia-me tonta. As pessoas que estavam no café pareciam apontar-me o dedo com desdém e tornavam-se pouco a pouco simples vultos errantes. Não me lembro de mais nada. Quando acordei estava deitada numa maca de um hospital. O cheiro a medicamentos deambulava pelo corredor e deixava-me enjoada. A minha mãe apareceu minutos depois e, apesar de muito preocupada, pensou, tal como os médicos, que tinha sido um desmaio devido à minha anemia.

Durante as duas semanas que se seguiram, procurei incessantemente uma clínica onde pudesse interromper a gravidez. Sabia que não conseguiria aguentar tudo aquilo sozinha, por isso contei ao Pedro e ele concordou com a minha decisão. Não encontrei nenhuma clínica, mas sabia de uma parteira, em Viseu, que me podia ajudar a abortar. Apanhámos o comboio ao romper da manhã e depressa encontrámos a casa. Na altura parecia-me tudo tão certo, tão óbvio! Foi muito doloroso, mas a certeza (momentânea) de uma juventude que não queria perder fez-me continuar.

A sensação de proteger a minha vida dissipou-se assim que saí de lá. Sentia-me culpada, egoísta e fria. Chorei durante todo o caminho e sentia raiva de mim própria e do Pedro que tinha anuído a toda aquela situação. Como era possível? Tantas certezas transformadas em pesar, abandono, arrependimento e remorso!

Assim que cheguei a casa, por volta das onze da noite, bastou-me dizer que tinha ido jantar a casa da Ana. Corri para o quarto e chorei até secar todas as lágrimas. Sentia-me desesperada e sem opções.

Passara um mês e ainda tinha pesadelos constantes. A minha relação com o Pedro estava demasiado atribulada. Na escola não me conseguia concentrar, sentia-me nervosa e tinha tonturas inabaláveis! Vomitava repetidamente e, apesar de exausta, não conseguia adormecer. Lembrava-me vezes sem conta da minha data de nascimento e procurava encontrar no canto mais obscuro da minha memória, lembranças desse dia. A preocupação com a morte invadia-me insistentemente e assustadores impulsos suicidas corrompiam-me a alma e esvaeciam toda a resistência que eu pudesse oferecer.

A minha família, os meus amigos e até alguns dos meus professores aperceberam-se, inevitavelmente, de que algo se passava comigo e aconselharam-me a procurar um psicólogo. O desespero mórbido que me adulterava fez-me ceder e compenetrar de que precisava realmente de ajuda. Só então percebi que tinha tido muita sorte por ter sobrevivido a um aborto que não tinha sido feito por profissionais e por ter encontrado apoio na minha família, pois muitas vezes as famílias são a primeira pétala a cair quando o vento sopra mais forte.

Apesar de tudo, um ano depois, já com 18 anos, ainda me culpo por tudo o que aconteceu e ainda sinto um afogo imutável. Vejo, dia após dia, o sol nascer lado a lado com as elegíacas recordações e a dor demasiado sentida que insistem em ficar. Sinto a minha alma despedaçar-se em exíguos pedaços que me rasgam lentamente.

Joana Costa (10º F)

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