O tempo e a memória LUÍS QUEIRÓS * Eduardo Lourenço, na abertura da conferência sobre violência na TV recentemente realizada na Universidade Católica, falou magistralmente sobre este tempo novo em que as imagens de TV se assemelham às sombras na caverna de Platão, em que o homem julga já ter conseguido dominar o tempo e atingido a eternidade e se considera, por isso, igual aos deuses. Tempo em que, no dizer do ilustre filósofo, já nem podemos sentir verdadeiramente a morte, tantos são os que a TV nos apresenta! O discurso de Eduardo Lourenço convida à reflexão... E eu atrevo-me a alongar o pensamento deste meu ilustre conterrâneo para falar do tempo aprisionado na memória de cada um de nós, de todos nós, porque a televisão, ou melhor, os registos da história que ela nos apresenta são também uma forma de aprisionar o tempo. O homem existe à face da terra há milhões de anos e convencionou-se chamar História ao período de tempo de apenas alguns milhares de anos que começa com os primeiros registos documentados. Esses registos preservados constituem um importante património da humanidade. Mas em tempo algum a capacidade de documentar os acontecimentos, isto é, a capacidade de criar memória da história para as futuras gerações, foi tão ampla como na actualidade. A era digital está a permitir à humanidade criar dentro de si uma memória fabulosa sobre os factos e as coisas. Esta memória não só é mais vasta do que nunca mas também é mais fácil de preservar, pois o suporte digital em que se fixa não se degrada facilmente, ao contrário do que se passava com os registos analógicos anteriores (escrita, fotografia, filmes, monumentos...). E esta capacidade está a ampliar-se e parece crescer em espiral. Além disso, cada registo pode replicar-se dentro de limites tão amplos que quase podemos dizer até ao infinito, de tal modo que um registo poderá destruir-se em múltiplos locais e preservar-se em muitos outros. E o espaço de arquivo, de tão reduzido que é, também não se afigura limitativo. Na Internet, que se assemelha a uma grande rede de comunicação neuronal da humanidade, a Informação flui suportada por essa memória que cresce exponencialmente. Projectando para o futuro aquilo que se passou nos últimos anos somos levados a pensar que esta memória será ainda multiplicada quase até ao infinito nos próximos tempos. Daqui a 20 ou 30 gerações, cada ser humano poderá guardar ou aceder aos registos digitais com texto, imagem e som sobre os acontecimentos ocorridos nas gerações precedentes e poderá construir uma árvore genealógica com milhões dos seus antepassados. No futuro, o computador será como que uma extensão do homem e nem sequer nos espanta a possibilidade de fazer o computador e o cérebro humano interagirem. De facto, a realidade já nos habituou a ultrapassar a ficção e nem Júlio Verne foi capaz de antecipar os progressos neste domínio. Mas como irá a humanidade conviver com esta memória colectiva, já hoje de tamanha abrangência e, no futuro, bem mais? O conhecimento e a memória acumulados serão uma forma de ampliar Liberdade do homem ou, ao invés, irão limitá-la? Não será esta memória um pesado lastro que terá de se carregar e acabará por enredar a própria humanidade e impedi-la de evoluir? Até porque esta memória, por ser objectiva e indestrutível, não terá a benevolência da memória humana que se esbate com o tempo e se esvai naquelas situações em que simplesmente não convém recordar. Ela será viva, actuante e implacável. A História aprisionada na memória colectiva construída pelos homens será, pois, uma carga que a humanidade terá de carregar no futuro. Pode ser luz que guia ou uma enorme teia emaranhada que obstruirá a luz da criatividade. O conhecimento, restrito, apesar da evolução que a humanidade já sofrera, na Idade Média estava aprisionado de forma hermética nas bibliotecas dos conventos ou das universidades e o seu acesso era limitado a uns tantos estudiosos. Esse conhecimento foi-se aprofundando, penetrou em áreas ainda insondadas, tornou-se mais abrangente, e a democratização dos povos levou-o a mais e mais amplas camadas populacionais nas sociedades; hoje flui nas redes de comunicação e está ao alcance de uma parte substancial dos homens. É um conhecimento que não está guardado e que ninguém parece controlar. Pode acontecer que esteja reservado a esta memória colectiva o mesmo destino trágico da biblioteca de Alexandria se um qualquer louco califa obtiver o poder de activar aquele fogo mais brilhante que mil sóis... dos escombros do qual, possivelmente, não restará nem Memória nem Humanidade. Mas pode também acontecer que esta metamorfose seja apenas mais um degrau na evolução desse fenómeno humano de que falava Teilhard Chardin, na ascendência para o ponto ómega em que contará já não tanto o Homem enquanto indivíduo mas a Humanidade, uma entidade nova, talvez não apenas com Memória mas também com Consciência, Alma e Inteligência. * Presidente do Grupo Marktest Texto publicado na edição de 18 de Fevereiro de 2003 do Diário de Notícias. |
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